É preocupante. Segundo o último relatório da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), cerca de 80% dos partos feitos nos setores privados de saúde no Brasil são cesarianas. Taxa muito distante da recomendação de 15% feita pela OMS e que está estreitamente vinculada com altas taxas de complicações e mortalidade materna e infantil, segundo o próprio Ministério da Saúde.
O que estaria acontecendo com a obstetrícia brasileira? Seria arcaico pensar em parto normal em pleno século XXI, com todos os avanços da medicina e da tecnologia? Ou será que os corpos das mulheres brasileiras estão perdendo a capacidade de parir? A questão não é tão simples, infelizmente. Obstetras são pagos apenas pelo parto e não pelas inúmeras horas que despendem no seu acompanhamento. Um parto normal pode durar mais de 24 horas, uma cesariana dura pouco mais de 40 minutos. De fato, fica difícil haver a disposição da classe médica em desmistificar os medos de um parto normal e incentivá-lo entre sua clientela. Como sobreviver dispondo-se a atender partos normais? Por outro lado, existe a questão cultural arraigada nas formas de nascer em nossa sociedade. Nossa cultura, ainda impregnada pelo modelo tecnocrático e cartesiano da existência, entende o corpo humano como uma máquina, que obedece a padrões e mecanismos isolados. E entende a mulher como uma máquina que é falha, que sangra todos os meses e que é incapaz de gestar e parir sem que intervenções e aparatos tecnológicos corrijam seu corpo e a conduzam ao seu destino com segurança. Da mesma forma, a epidemia das cesarianas de hora marcada que vivemos hoje reflete nossa tentativa inquietante de controlar um evento de dimensão impalpável e do qual não temos qualquer controle. Um parto normal é a manifestação pungente e gritante da natureza, é a sabedoria ancestral impressa no corpo feminino que simplesmente acontece quando tiver que acontecer, quando mãe e bebe estiverem prontos. Não marca hora, não é previsível, não é igual de mulher para mulher, nem de bebê para bebê. Mas é preciso saber que pagamos um preço por tamanha interferência na forma de nascer. As altas taxas de complicações respiratórias em recém-nascidos, assim como as complicações maternas no pós-parto e na amamentação estão estreitamente relacionadas com o fato de que os bebês estão nascendo antes do tempo e/ou com excesso de intervenções. A literatura científica vem nos revelando isto de forma clara. Mas muito pouco se fala sobre o preço psico-afetivo para mãe e bebê em uma cesariana de hora marcada. Ainda não mensuramos o impacto emocional que isso pode trazer a curto e longo prazo. Não há como negar que existe uma perda de um processo que se dá tanto fisiologicamente como psiquicamente na mãe e no bebe. É como se uma etapa da vida fosse “pulada”. Muitas mulheres de fato relatam sobre a sensação de “buraco”, sobre o vazio psíquico que se instala após a vivência de uma cesárea, mesmo sendo ela desejada. Um processo vivo foi interrompido e a interrupção deixa marcas, quer sejam conscientes e incômodas ou não. Um exemplo claro disto é que diversos estudos apontam para a relação entre a qualidade do parto e a depressão pós-parto. Em primeiro lugar há a perda da liberação natural de um coquetel de hormônios do parto, principalmente da ocitocina - o “hormônio do amor” nos dizeres do obstetra e pensador francês Michel Odent. Este hormônio, liberado por mãe e bebe durante o trabalho de parto, não é apenas responsável pelas contrações uterinas, mas também por preparar a mãe para formação do vínculo com seu bebê e para a amamentação. É como se as portas de todos os sentidos maternos se abrissem e ficassem receptivos para aconchegar a criança que ali vai nascer. Ajuda no estabelecimento de um vínculo materno que vai além do consciente e racional. Um amor que é garantido ou enriquecido fisiologicamente, principalmente se os dois – mãe e bebê - puderem ficar juntos sem perturbações nas primeiras horas de vida, um período crucial para diversas espécies animais e para nós seres humanos. Este amor entre mãe e filho que ali começa a ser estabelecido será o protótipo de todas as formas de amor que este indivíduo irá desenvolver. Pensando novamente no bebê, a estimulação cutânea que ele recebe durante as contrações uterinas e ao passar pelo canal de parto, prepara melhor o seu organismo para adaptar-se fora do ventre materno. Mais do que isso, a constante massagem do parto no corpo do bebê dá a ele o sentido de limite: “aqui termina você e aqui começa o mundo” é o recado que seu corpo escuta. Eis o seu primeiro e talvez mais importante passo rumo a individuação, ele agora não pertence mais a um todo, mas tem um corpo que o delimita e este limite será o norte para sua segurança emocional, um toque que precisará por muitas vezes ser reafirmado no desenvolver de sua vida. E mais que tudo, há a perda de uma oportunidade única na vida da mulher. A experiência do parto carrega em si o ato de iniciação na maternidade e uma oportunidade ímpar de transformação e desenvolvimento, de conhecer e enfrentar os próprios limites, de deixar-se morrer e renascer, descobrindo-se viva, forte e capaz. As dores, cores e hormônios secretados pelo organismo neste intenso processo não só fazem nascer um indivíduo, mas são o húmus para o renascimento da própria mulher. É um rito de passagem necessário e que, se bem amparado, brinda a mulher com o fortalecimento de sua confiança em cuidar de si mesma e do novo ser que veio ao mundo. De fato, alguns estudos apontam para o fato de que mulheres que passaram por cesarianas apresentam maior índice de adoecimento psicossomático e se sentem menos habilitadas para cuidar de seus filhos no primeiro ano de vida, período tão fundamental para o desenvolvimento psíquico da criança. Ainda é cedo para falarmos dos impactos da epidemia de cesarianas na humanidade. Estamos inseridos neste momento, é algo que somente agora vem sendo objeto de estudos para alguns. Mas não se pode negar que o parto é uma experiência psíquica viva, intensa, rica e que, seja como for, deixa marcas a serem carregadas pela mãe, pelos filhos e também nas inter-relações familiares. Não se pode mais pensar em depressão pós-parto, problemas na amamentação e no vínculo mãe-bebê sem levar em conta a forma de parir e de nascer, sem levar em conta a qualidade do parto e a interferência maciça neste processo. Mas talvez resida aí mesmo, no pensar sobre as formas como nascemos hoje, uma oportunidade ímpar. Talvez um olhar cuidadoso sobre nossa epidemia de cesarianas nos leve a uma compreensão menos tecnológica e cartesiana da realidade e ajude o homem a resgatar uma visão mais una e integrada de si mesmo, uma visão onde o corpo e a alma, ciência e amor possam realmente se encontrar. Quem sabe? Referências bibliográficas:
Fonte: Projeto Despertar Leave a Reply. |
Eleonora MoraesPsicóloga pela USP, Doula formada pela ANDO e mãe de 3 filhos. É a mãe maior do Despertar do Parto desde 2004. Arquivo
August 2015
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12/2/2006
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