Sou Fernando, marido da Ana Paula, pai do cesareado Miguel e da partumanizada Lis.
"Aqui vai a minha descrição do parto da Lis, depois de quarto meses, sem tanta contaminação emocional, mas com lembrança viva. Sei também que uma das utilidades do relato do PAI, é servir a propósitos de ilustração e educação (pra não usar a palavra conversão) de outros pais inseguros (para não usar a palavra apavorados), em relação `as maravilhas libertadoras do parto humanizado. Sendo assim digo aos demais rapazes:
Não é tarefa fácil descrever o que se vive num momento desses. Tenho dito que é aquilo que se sente frente `a presença do mistério. Chamo mistério `aquelas ocorrências conhecidas e corriqueiras da vida como nascimento e morte, ou ainda um céu de inverno na Chapada. Sabem aquela impressão de sonho acordado que se tem ao ver uma pessoa próxima morta? Já viveram isso? Não falo da dor, nem da tristeza, mas da sensação de irrealidade real, de suspensão das certezas e noção de prioridades frente algo que não se consegue explicar. Vivi isso no parto do Miguel também, há quatro anos atrás. Nascimento é chegada de um filho, e não dá pra ficar inerte frente a isso. Mas o nascimento da Lis me deu a noção que o pai pode e deve ocupar um lugar no processo, que não seja o de roedor de unhas e torcedor passivo numa sala de espera. Isso para o bem da mãe, da criança e do pai também. Nosso parto foi em casa, com doula, parteira, com torcida, sem anestesia e durou 32 horas. Durante esse tempo, digo que vivemos momentos que alternaram entre a mais leve descontração, aos mais agrestes desertos de medo e insegurança. Coisas do processo. Inerentes `a ocasião. Foi importante nossa certeza de que o parto domiciliar era o melhor para nós, e que as pessoas que estavam ali sabiam o que estavam fazendo. Foi importante termos podido experenciar o que se apresentou para experenciarmos, um ambiente de conforto e a ligação com gente com clareza de que a dor não é algo insuperável, e que vitória não existe sem esforço. Ainda aos rapazes: Tenham no mínimo boa vontade de entender do que se trata essa milonga de "parto humanizado" ou "parto domiciliar". Parece no começo coisa de porralôca de chinelinho de couro, mas eu digo que é pura presença do mistério." Fernando "Na verdade, este parto começou a ser gerado há quase 4 anos, após o nascimento do meu primeiro filho, Miguel, por cesárea. Naquela época, por sugestão da Rox, minha primeira obstetra , comecei a participar da lista Amigas do Parto, e através das discussões da lista aos poucos fui questionando tudo aquilo que aprendi durante os anos de faculdade de medicina e na prática da neonatologia. Foi um processo lento, penoso e irreversível. Através da lista, fui abandonando a idéia do parto como algo perigoso e necessitado de inúmeras intervenções médicas.
Assim, antes mesmo de engravidar novamente, já estávamos decididos pelo parto em casa, assistido por uma parteira. Isso era uma coisa que eu fazia questão: nesta altura eu já estava convicta que a grande maioria dos obstetras não está capacitado para atender a um parto natural sem intervenções, são os vícios da nossa formação, que privilegia o uso indiscriminado da tecnologia. Através da Ana Cris (doula), conheci a Vilma Nishi, a parteira que procurávamos: experiente, dedicada, sensível, sintonizada com a força da natureza e com o significado espiritual do nascimento de uma criança. Assim que comecei o pré natal com a Vilma, na metade da gravidez já fui surpreendida pela diferença da abordagem. Ao contrário dos médicos,partíamos sempre do princípio que estava tudo bem comigo e com o bebê, e não o contrário. Foi uma gravidez ótima, nunca fui ao médico, fiz pouquíssimos exames, apenas o básico, e um único ultrassom com 24 semanas, quando soubemos que esperávamos uma menina. Eu, que nunca imaginei ter uma filha (sempre achei que teria outro menino)percebi então a oportunidade que se apresentava: eu renasceria como mulher ao dar à luz minha filha. Minha data provável do parto era 25/09, mas eu sempre tive a sensação que o bebê viria dia 24. Poucos dias antes,entrei em licença e comecei a desacelerar. Estávamos terminando uma reforma na casa e eu ainda não havia organizado as coisas do bebê. Pretendia aproveitar estes dias para isso, mas acabei não fazendo muita coisa. Meu corpo pedia descanso antecipando o que estava para vir. No dia 22, acordei bastante incomodada, com contrações indolores mas muito frequentes. À tarde, meus pais ( que nem imaginavam que o bebê nasceria em casa) vieram de Minas trazer o Miguel. Na verdade, eu havia planejado deixá-lo na casa dos avós durante a semana para ter mais tranqüilidade durante o trabalho de parto, mas surpreendentemente, ele que adora ficar com a avó, pediu para voltar depois de 1 dia porque a irmãzinha ia nascer". Lá pelas 20 horas liguei para a Ana Cris para bater papo. Comentei que achava que o parto seria dia 24 e ela apostou na outra semana. Às 22 horas, a bolsa rompeu e as contrações aumentaram de intensidade e ficaram regulares. Liguei para a Vilma e Ana Cris ( que ainda achou que era brincadeira!) e começamos a arrumar o cenário : arrastamos a cama, trouxemos o colchonete, acendemos as velas, escolhemos os CDs. Depois da meia noite, a super equipe chegou. Comentário aliviado do Fernando: "não é que o negócio funciona mesmo? Tá todo mundo aqui! Eu achava que a evolução do meu trabalho de parto seria rápida, já que no parto do Miguel cheguei a 7 cm em cerca de 5 horas. Lembro de ter pensado "errei a data, amanhã cedo minha menina já terá nascido". Quando a Vilma me examinou, levei um susto: colo do útero grosso, 1 cm de dilatação. A noite ia ser longa. Fizemos uma massagem, eu ainda tentei dormir um pouco, mas não consegui. Acabei indo para a cozinha conversar um pouco. As contrações estavam aumentando e a Vilma sugeriu que eu fosse para a banheira para relaxar um pouco. Fiquei horas na banheira, ouvindo música, à luz de velas. Apesar das dores, eu me sentia feliz, sintonizada com o meu corpo. Pensava na minha avó, que pariu 12 filhos em casa, e em todas as mulheres antes dela. Tudo estava como deveria ser, e eu me senti grata por poder viver esta experiência em casa. Durante a madrugada, as contrações foram ficando bem fortes, mas a dilatação progredia lentamente. De manhãzinha, estava com 4 cm, bastante cansada e com muita dor. Resolvi deitar um pouco, cheguei a cochilar entre uma contração e outra. Na hora do almoço, a Vilma sugeriu que eu descesse um pouco, me movimentasse, andasse no sol, mas eu estava completamente sem energia, desanimada, mal conseguia me mexer. O pessoal foi almoçar, mas eu nem podia pensar em comida. A Vilma então apareceu com um prato de comida e praticamente me obrigou a comer. Comi um pouquinho, mais para não ficar chato do que por estar com fome, e imediatamente senti alguma coisa mudar. Fiquei bem mais animada, tomei um banho, desci para a sala, consegui conversar civilizadamente com o Jorge Kuhn, que havia chegado de São Paulo para ver se conseguia assistir um parto domiciliar. A Vilma preparou uma "poção" com homeopatia para melhorar o ritmo das contrações, e elas passaram a ser mais frequentes, porém mais curtas e suportáveis. Fui caminhar no quintal, tomar sol, mexer a bacia. O Fernando e eu ficamos dançando na grama, ele me afirmando o tempo todo que tudo daria certo, que eu ia conseguir ter o nosso neném em casa, como a gente queria. Também fiquei um bom tempo sentada na bola suíca e também de cócoras, pendurada na rede. À tardinha, tomamos um lanche, e as contrações voltaram a doer bastante. À noite, um novo toque : 7 cm! Todo mundo comemorou, fiquei muito animada, continuei alternando exercícios na bola e caminhadas. Minha tia Fátima e minha prima Sophia chegaram de São Paulo para dar uma força com o Miguel e assistir ao parto. Lá pelas 11 da noite, fui deitar um pouquinho com o Miguel para fazê-lo dormir. Tive umas contrações punks (sem poder gemer muito para não assustar o menino) e quando levantei, estava com uma tremedeira incontrolável. A Ana Cris comentou que eu devia estar na transição, e me levou para o chuveiro quente, onde deu para dar uma relaxada. Por volta da meia noite, a dilatação já estava completa, com um pequeno rebordo de colo, que a Vilma tentou reduzir com a mão em todas as posições possíveis, me fazendo ver estrelas de tanta dor. Minha intuição portanto estava certa: minha menina nasceria dia 24. Lembro da Vilma dizendo: " quer fazer nascer ou prefere descansar um pouco?" Como assim, descansar? E comecei a fazer força em várias posições, de lado de quatro, deitada de cócoras. As horas foram passando, a dor beirava o insuportável. Tudo doía: os ossos da bacia, a perna, a barriga. Se eu estivesse no hospital, nessa hora teria pedido analgesia com certeza - aliás, teria pedido bem antes. Ainda bem que não estava! A Vilma, Ana Cris e o Fernando se revezavam fazendo massagem nas minhas costas nas contrações.Perdi a noção do tempo e nem sei que horas eram quando a Vilma me examinou de novo e disse que a neném estava defletida. Nesta hora, fiquei desesperada. Embora ninguém tenha jamais sugerido tal coisa, achei que teria que ir para o hospital, porque todos os bebês defletidos que eu já vi ou acabaram em cesárea ou fórceps. Daí para frente, chutei o balde: gritei, chorei, xinguei todo mundo, falei que não aguentava mais. Voltei para o chuveiro, sentada na bola.Perguntei para a Vilma: "e agora, o que a gente vai fazer?" e ela, na maior calma, disse que estava tudo bem, que eu precisava mexer o quadril, gritar se tivesse vontade. Obedeci, fiquei lá no chuveiro com a Ana Cris, depois com a minha tia, alternando entre cantar e gritar durante as contrações. Na verdade,eu já nem distinguia mais o que era contração, tudo doía o tempo todo! Experimentei ficar de cócoras durante as contrações, segurando nas mãos da Fátima, que cantava um mantra que falava da força da natureza. Saí do chuveiro, sentei no vaso e de repente senti vontade de fazer força, um puxo. Nem acreditei, parecia que o bebê estava descendo, finalmente. Chamamos todo mundo, e eu resolvi ficar no banheiro (estava dando certo, ia ser ali mesmo). O Jorge trouxe uma cadeirinha de parto, eu me sentei nela, apoiada atrás primeiro pela Ana Cris, depois pelo Fernando. A vontade de fazer força era incontrolável, ao mesmo tempo uma impressão horrível de que vai arrebentar tudo. A Ana Cris falou: "é só uma impressão, não vai rasgar nada. Agora é a hora do ’foda-se’, vai nascer.” Eu senti perfeitamente o bebê entrar na bacia, girar. Continuava doendo muito, mas agora era diferente, estava nascendo, eu me sentia cheia de energia. A Vilma colocou minha mão e a do Fernando na cabecinha do bebê, já estava uma boa parte para fora, que bom! De repente, uma força grande, a Vilma ainda tentou segurar para a cabeça sair devagar, mas não deu: a bebê saiu com tudo, mãozinha na bochecha e circular de cordão. O tempo parou. Primeiro, a sensação que eu tive é que a Vilma tinha empurrado a bebê de volta. Só depois entendi que tinha nascido. Peguei minha filha no colo, ela veio de olhos abertos, chorou um pouquinho. Olhei para as pessoas, que estavam emocionadas, chorando: O Jorge com o celular, transmitindo o nascimento para a esposa, a Ana Cris, que não assistiu ao nascimento (foi esquentar uma compressa para o períneo lá na cozinha, a pobre), minha tia e minha prima, com a filmadora, o Fernando me abraçando. Eu não sentia vontade de chorar, me sentia vitoriosa, poderosa, redimida. Com este parto, eu me perdoei pela cesárea que sofri. Olhei para minha filha, uma menina, nascida com a força da natureza, minha cura, que será um dia mulher e passará pela maravilhosa experiência de parir um filho. Como eu, minha mãe e minha avó parimos. Como todas as mulheres antes de nós. Um ciclo se fecha e recomeça hoje, com o nascimento da Lis, nome que significa lírio, ao amanhecer no início da primavera. E não tem como não agradecer a quem é devido! À Rox, por me mostrar o caminho. Ao Fernando, pelo apoio e pela firmeza na hora certa. À Ana Cris, que até hoje me surpreende pela dedicação,paciência e idealismo. Ao Jorge, pela delicadeza, atenção e por me mostrar que nossa profissão ainda tem jeito. À Vilma, que tornou tudo possível, pela sensibilidade, confiança, competência. Por acreditar nessa missão sagrada." Ana Paula Caldas pediatra neonatologista e mãe de dois filhos [email protected] |
Depoimentos de PartosSe você quiser compartilhar o seu depoimento, clique aqui e envie. Categorias
All
|
15/8/2008
0 Comments