Passados dois anos e eu ainda não tinha conseguido escrever o meu relato de parto. Eis que eu recebo um convite para “apadrinhar” uma gestante que eu não conheço, escrevendo para ela uma mensagem que a incentive no seu parto. Comecei a escrever a carta para essa gestante – a Juliana, e no meio do caminho o meu relato de parto brotou. Acho que me faltava a sensação de ter um interlocutor. E o meu interlocutor agora não é um interlocutor qualquer, mas uma mulher que em breve vai ter o seu momento de parir. Então, obrigada Juliana. Você, sem saber, me ajudou a escrever o meu relato de parto!
Eu vim de uma família na qual as mulheres têm a cesárea como forma de trazer seus filhos ao mundo. Minha mãe teve quatro filhos, todos de cesárea eletiva. Um deles, o meu irmão mais velho, quase morreu por ter nascido prematuro. Ainda assim, parto normal na minha família era coisa de índio, de bicho. Mas era isso que eu queria de todo o coração. Minha gravidez foi super desejada e nem precisei esperar o atraso da menstruação pra fazer o exame de gravidez. Eu já sabia. Sempre fui muito ativa, então busquei a ioga como atividade física para o próximos 9 meses que viriam. Nessa procura por ioga para gestantes em Ribeirão Preto, encontrei o Despertar do Parto. As aulas de ioga eram precedidas de uma roda de conversa, onde compartilhávamos angústias, alegrias e sonhávamos com o parto e a chegada do bebê. Lá me dei conta de que no nosso país, infelizmente, a tendência do sistema de saúde é conduzir a gestante para a cesárea, mesmo que isso não seja nem necessário, nem o desejo da mulher. Fiquei mal. Então, quer dizer que, mesmo que tudo esteja bem, mesmo que eu não queira e não precise de uma cirurgia, isso vai ser imposto a nós? Li sobre os riscos da cirurgia para mim, para o bebê, para uma futura gestação e tive muito medo. Porém, decidi transformar esse medo na força propulsora para batalhar pelo parto mais seguro e respeitoso pra mim e para a minha filha. Decidi contratar uma doula – a Helena Junqueira. Escolhi o GO com maior índice de parto normal da cidade e fui deixando claro pra ele as informações que eu vinha colhendo e as minhas escolhas a partir de tais informações. Estava preparada racionalmente e fisicamente para o parto. Mas, quem disse que a gente é só isso? No fim da gestação, voltei a ter medo. Medo da dor, medo da morte, medo do desconhecido. E se eu não der conta? E se eu precisar de anestesia? E se algo der errado? Minha resposta ao medo foi me afastar de tudo que pudesse alimentá-lo e me cercar só daquilo que me fazia bem. Quando ficávamos só eu, minha filha e o Pedro bem juntos, isolados até, o medo fugia de nós. Fui me isolando, me fechando em nós três. No dia dos namorados eu saí pra jantar com o Pedro - meu namorado, marido e pai da minha filha. Eu completava 40 semanas naquele dia. Durante o jantar, ainda que inconscientemente, convidamos nossa filha pra vir ao mundo. Falamos dela, do quanto queríamos que ela nascesse e do quanto estávamos felizes pela proximidade da sua chegada. Cecília gostou da nossa prosa e quatro horas após o jantar, as contrações começaram. Primeiro, achei que fossem só “coliquinhas” que não me deixavam dormir. Levantei da cama e fui começar o dia às quatro da manhã. Essas cólicas me acompanharam o dia inteiro e eu resolvi ligar para a minha doula e para o meu médico. Ela me tranquilizou, disse para eu tentar relaxar e se colocou à disposição caso o quadro evoluísse. Ele pediu que eu fosse ao consultório. 1 cm de dilatação. Ele me mandou pra casa para relaxar, e voltar a falar com ele caso algo mudasse. Fui pra casa, tomei banho de banheira, chá de camomila... Mas, quanto mais eu relaxava, mais as contrações vinham. Nada daquela dor horrorosa que a gente vê nos filmes ou nas novelas – uma cólica que me fazia parar, respirar e continuar o que eu estava fazendo antes. Meu marido chegou do trabalho, depois de um longo plantão e fomos dormir. Vira pra lá, vira pra cá e a coliquinha não deixa dormir. Fui ver TV, porque TV dá sono. Jogo de futebol, primeiro tempo, segundo tempo, filme na sequência, seriado. Coliquinha danada. Resolvi olhar no relógio e ver a duração e intervalo das contrações. Percebi que elas estava ritmadas e com pouco intervalo entre elas. “É... acho que você está em trabalho de parto” disse a minha anjo-doula Helena. Isso fez a maré mudar. Enfim o parto chegou chegando. Helena levou cerca de 20 minutos pra chegar na minha casa. A dor chegou antes dela. Acordei meu marido e falei que estava em trabalho de parto, mas disse que ele devia ir dormir de novo porque ele estava cansado e, sabe como é, parto normal demora. Era meia-noite e, segundo meus cálculos, eu só iria parir lá pela hora do almoço. Nunca fui muito boa em matemática. Daqui pra frente é aquela hora que a parida já não consegue mais relatar com precisão. A cabeça já não funciona porque o corpo - a nossa parte bicho, está no comando. Sentia uma dor imensa nas costas, junto com uma gigante cólica abdominal (bem semelhante à cólica menstrual). E a dor vinha em ondas, começava pequena e ia aumentando, aumentando... e diminuía devagarinho. Helena me levou para o chuveiro e me ofereceu a bola pra eu sentar em cima. A água morna, a posição confortável e o olhar seguro da minha doula fizeram com que as dores não diminuíssem, mas se tornassem absolutamente suportáveis. No intervalo das contrações, o corpo volta a ficar em silêncio, eu recobrava a consciência e falava. Falei sobre a vida, sobre o tempo, fofoquei. Foi então que mais uma contração se aproximou e eu disse: “Ai, meu Deus, não! Não! Não”. Helena segurou minha mão e disse mais alto que eu: “Sim!Sim!Sim!”. Foi crucial. Dali em diante, cada contração foi recebida com um “sim!” meu. Vem, vem sim, pode vir! Vem Cecília. Nem sei por quantas horas fiquei no chuveiro, sentada na bola. Só me lembro de que, em a algum momento, eu me senti encharcada e querendo ir pra minha cama. Deitei e as contrações vinham com força, me fazendo querer arrancar um pedaço da parede com as minhas mãos. Entre as contrações eu já não falava mais. Estava cansada, com sono, com dor e comecei a reclamar disso. Eram mais de 3 horas da manhã e a Helena sugeriu que eu dormisse um pouco. Achei que seria impossível dormir naquela situação, mas, não sei como, entre uma contração e outra, eu dormia. Até que meu sono foi interrompido por um estalo dentro de mim. Era como se um osso muito fino tivesse se partido chegando a fazer um barulinho. O estalo veio acompanhado por uma enxurrada que molhou minhas roupas, minha cama e meu corpo. “A bolsa rompeu!”. E a maré mudou novamente. Dali em diante fiquei bicho ferido, absolutamente entregue, sem o menor poder de me opor a quem quer que fosse. Por isso a escolha de quem vai acompanhar o parto é fundamental. Nessa hora, você pode não estar apta para brigar, discuti e se impor. Eu, sempre tão firme e determinada, fiquei querendo ser conduzida, pequena e frágil. Helena olhou o aspecto do líquido que saiu da bolsa. Tudo ok! Mas, depois do rompimento da bolsa, a dor ficou beirando o insuportável. Nada aliviava. Quer dizer, quase nada... Só um abraço me ajudava suportar a dor. Eu precisava de um forte abraço durante a contração, precisava apertar alguém contra meu corpo para suportar a dor. Acorda o marido, liga pro GO e prepara para ir para o hospital. Eu já disse que me preparei para o parto. Faltou só preparar a bolsa maternidade! Helena saiu catando umas coisas pra mim e pra Cecília e eu fiquei abraçando o Pedro. O Pedro foi trocar de roupa, eu abraçava a Helena. Fomos para o hospital comigo gemendo no banco de trás do carro. Chegamos umas 4 da manhã no hospital. Eu estava em franco trabalho de parto. A recepcionista olha pra mim, pega o telefone e diz “Alguém prepara o centro cirúrgico porque tem uma cesárea não agendada”. Que triste a situação do nosso país que olha para uma gestante e já logo supõe que se trata de uma cirurgia... Rosnei, entre dentes, que era um parto normal. Meu GO chegou, fomos para o quarto. Exame de toque: 9 centímetros! Ok, foi uma delícia saber que toda aquela dor não foi em vão, que meu trabalho de parto estava a pleno vapor e que em breve a minha filha estaria nos meus braços. Mas, nenhuma contração, NADA no parto doeu mais do que o exame de toque (nota mental para o próximo parto: quem vier me dar toque vai levar chute). Gritei, que nem um bicho ferido, para que o GO tirasse a mão de mim. Fui encaminhada para o centro cirúrgico (não me pergunte pra quê). Já no elevador, meu corpo me mandou fazer força. Era como se um balão de gás estivesse cheio dentro da minha barriga e a única coisa a ser feita era empurrá-lo um pouco mais pra baixo. É irresistível, não tem como não fazer força durante o expulsivo. E não tem, nem metáfora, nem comparação que possa explicar para uma mulher o jeito que ela deve fazer força durante o expulsivo. É o corpo quem dá as coordenadas certinhas. E eu estava no elevador quando meu corpo mandou que eu começasse a fazer força. Corre-corre no centro cirúrgico, essa mulher vai parir fora da maca. O Pedro foi vestir o roupa e a touca de centro cirúrgico e depois a Helena. Eu fiquei por talvez 30 segundos sem nenhum acompanhante comigo no centro cirúrgico, só com os médicos e equipe de enfermagem. Experiência estranha. Entendo perfeitamente as mulheres cujo parto trava, não evolui quando chegam ao hospital e se vêem privadas do que lhes é caro, do que lhes traz conforto e aconchego. Veio uma contração e eu sozinha. E agora? Uma técnica de enfermagem arrumava a maca para que eu me deitasse. Olhei pra ela e, meio que avisando, meio que suplicando, falei: “Vou te abraçar...” e abracei essa mulher que eu nunca tinha visto na vida. 30 segundos sozinha e foi um bálsamo ver a Helena e o Pedro de volta. “Vou parir na posição que eu quiser!”, eu disse a gestação inteira. Mas não achei posição que me desse conforto. Tentei me deitar de lado e não me fez bem. Justo a posição que eu tinha lido que era a mais contra-indicada para o parto (litotomia: deitada, de barriga pra cima), foi a que me pareceu melhor. Vai entender... De tempo em tempo vinha o imperativo do meu corpo para que eu fizesse força. Meu marido me abraçava, a Helena segurava minha mão. O GO e o pediatra tentaram me explicar blá blá blá, como eu deveria fazer força blá blá blá, para o bebê sair mais rápido blá blá blá. Mas eu estava ocupada demais para ouvi-los. Uma técnica de enfermagem, coitada, tentou empurrar a minha barriga. Rosnei pra ela “Não empurra a minha barriga!”e ela virou pó, nunca mais foi vista naquele centro cirúrgico. 45 minutos de expulsivo e eu estava cansada. Olhei pra Helena e disse que não aguentaria mais. Ela saiu do meu lado, foi espiar entre as minhas pernas e voltou com a frase que me deu gás pra mais 400 expulsivos: “Eu vi uma cabecinha loirinha, loirinha. Tá acabando, você consegue”. Cecília fingiu que ia sair, mas decidiu ficar mais um pouquinho dentro de mim. Não senti coroar, não senti o tal círculo de fogo, só senti quando ela veio totalmente decidida a nascer. Eram 6:17 da manhã. Pra essa hora, faltam palavras. É como ter um milagre acontecendo dentro de você. Inominável. Cecília veio pro meu colo, fez uma pausa no choro para me olhar bem fundo nos meus olhos. Tão pequenina e tão forte a minha menina. Apresentei-me pra ela. Ficamos ali por não sei quanto tempo, só sei que foi menos do que gostaríamos. O sistema tem pressa! Ela foi pesada, medida e voltou pro meu colo pra mamar em paz. Parto sem indução, sem episiotomia, sem laceração... sem intervenção alguma. Cecília plenamente saudável. Nenhum gemido de dor foi em vão! O assombro da equipe da enfermagem ao me ver sentar, me ajeitar na maca normalmente e amamentar a minha filha ali no centro cirúrgico denuncia o quanto essa prática é rara nos nossos hospitais e o quanto a cesárea pode inviabilizar tudo isso. Mudei de maca sem ajuda e seguimos os três para o nosso quarto sob os comentários das enfermeiras de que “nossa, parto normal é outra coisa”. Sim, parto normal é outra coisa. É coisa de bicho. Eu sou bicho. Você que leu este relato, também é bicho. Toda mulher é bicho. |
Depoimentos de PartosSe você quiser compartilhar o seu depoimento, clique aqui e envie. Categorias
All
|
26/11/2014
7 Comments